quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Biografia e autobiografia na pesquisa em música


Nova disciplina na pós-graduação em Música

Neste primeiro semestre de 2012, estarei ministrando uma nova disciplina no programa de  pós-graduação em Música, como parte da área de concentração em Musicologia. Biografia e autobiografia na pesquisa em música (CMU5571) é uma disciplina de 7 créditos que será oferecida às 5as feiras, das 13h às16h. Está voltada aos pesquisadores que utilizam, em sua bibliografia, gêneros textuais ligados à produção biográfica e/ou autobiográfica como fontes de pesquisa. Também pretende auxiliar os pesquisadores que, por características de seus objetos de pesquisa, não dispõem de material biográfico crítico e atualizado sobre seus objetos de estudo e se deparam com a necessidade de produzir algum tipo de material biográfico, ou de divulgar textos autobiográficos inéditos produzidos pelos músicos que tomam por objeto. A relação autor-obra, por exemplo, merece ser analisada criticamente, o que é um dos objetivos da disciplina. A produção biográfica sofreu uma importante transformação a partir dos anos 1980 e ganhou um novo lugar nas pesquisas acadêmicas, principalmente a partir da discussão sobre memória e história. A disciplina Biografia e autobiografia na pesquisa em música (CMU5571) , portanto, pretende oferecer um quadro teórico de referência e auxiliar os pós-graduandos na utilização dos materiais biográficos e autobiográficos em suas pesquisas em música. Leia abaixo um detalhamento dos objetivos, programa e bibliografia a ser utilizada. 


PROGRAMA

OBJETIVOS:
  1. Fornecer ao aluno de pós-graduação em música fundamentos teóricos para a leitura e  análise de fontes biográficas e autobiográficas.
  2. Auxiliar o aluno na utilização de fontes em suas pesquisas, analisando diversos gêneros textuais ligados à produção biográfica e autobiográfica e discutindo as formas de citação e de aproveitamento desses materiais na pesquisa em música. 
  3. Discutir a preparação de textos que tenham como conteúdo principal a apresentação biográfica ou autobiográfica.
  4. Analisar, a partir da confluência dos estudos históricos, musicológicos e literários, diversos tipos de construções biográficas e autobiográficas, compreendendo-as a partir dos pressupostos de seu gênero textual e das circunstâncias contextuais de sua produção.
  5. Considerar as variações de sentido e de apropriação dos textos biográficos e autobiográficos a partir da alteração de seus suportes e protocolos de veiculação (por exemplo, de um discurso falado a um texto publicado, de uma entrevista ao romance biográfico, de um currículo artístico de divulgação à pesquisa acadêmica, entre outros).

JUSTIFICATIVA:

Uma busca nos títulos já defendidos na pós-graduação da ECA-USP, no campo específico da música, mostra um grande número de trabalhos voltados à análise de obras artísticas ou conjunto de obras, a partir da identificação de um autor (compositor) ou intérprete.

A disciplina Biografia e autobiografia na pesquisa em música propõe uma fundamentação teórica transdisciplinar que auxilie o pesquisador  em  sua análise da produção textual biográfica e dos distintos materiais com caráter autorreferencial, aí incluídas as autobiografias. As duas principais modalidades de abordagem do conteúdo biográfico estarão contempladas na disciplina: a análise crítica de textos biográficos ou autobiográficos e a produção textual (pelo pesquisador) de perfis, cronologias ou textos biográficos, a partir de material documental e/ou de fontes textuais.  O foco da disciplina será a produção textual. Fontes em áudio e vídeo, sobretudo entrevistas e documentários, cada vez mais abundantes, também poderão ser discutidas.

O modelo autor-obra é tradicional no estudo da música.  Lydia Goehr, em The imaginary museum of musical works, discute que tipo de objeto é uma “obra musical” e descreve a forma pela qual um determinado conceito de obra emergiu na prática da música clássica e passou a ser utilizado desde então. A partir de tal conceito de obra musical, em diferentes períodos históricos e com distintos pressupostos teórico-conceituais, são encontradas referências bibliográficas que partem do princípio de que a vida e a obra se explicam mutuamente.

Em seu texto inicial à História da Música no século XIX, Jim Samson discute essa proeminência da obra  sobre as práticas (The musical work and nineteenth-century history). Em outro texto, The great composer, Jim Samson aborda as histórias da música orientadas ao compositor, visto como gênio. Em suas reflexões sobre o século XIX, Samson demonstra o quanto a centralidade da obra está ligada à valorização do compositor e, posteriormente, do intérprete. Estes exemplos demonstram a importância de um aprofundamento sobre o biografismo, que proliferou na bibliografia musical a partir, justamente, do século XIX.

As pesquisas que abordam intérpretes e educadores musicais como objetos de pesquisa também demonstram a pertinência da discussão sobre o biografismo ligado aos estudos sobre música. O relato das atividades de um compositor, intérprete e/ou docente geralmente está concentrado nas atividades do biografado: seus estudos, as composições e/ou apresentações das obras artísticas, a atuação profissional, o repertório praticado, os deslocamentos geográficos em sua trajetória, o contato com outros artistas e com o meio intelectual, familiar, social e político são algumas das relações salientadas nos estudos biográficos.

A biografia, como gênero discursivo, tem uma longa história na cultura ocidental, e não raras vezes envolveu autores e biografados em polêmicas públicas. Entre estas polêmicas estão,  principalmente, aquelas relacionadas à discussão sobre a autoria e o ineditismo de propostas estéticas,  ou ainda as questões ligadas à privacidade e ao direito à informação. Muitas vezes, estas polêmicas se transformaram em verdadeiras disputas pela memória legítima, mais ou menos explícitas nos textos biográficos e autobiográficos.

Afastada da produção acadêmica durante muito tempo, por ter sido um gênero literário praticado por amadores, o gênero biográfico foi discutido, a partir dos anos 60 do século XX, por autores como Barthes, Foucault e Bourdieu. Para Bourdieu, nas “histórias de vida” há uma tendência à construção de uma falsa coerência e linearidade, responsáveis pelo que ele chama de “ilusão biográfica”. Barthes e Foucault investigam a função-autor, questionando a ênfase na valorização do indivíduo autônomo. Estes textos, incluídos na bibliografia, têm sido desde então discutidos e, em certa medida, foram responsáveis por uma reorientação nos estudos biográficos.

A partir dos anos 80, há uma renovação na escrita biográfica, que assume um novo lugar na cultura intelectual, em diálogo com as disciplinas do texto (literatura, crítica literária, análise do discurso, hermenêutica, entre outras) e as disciplinas históricas, sobretudo nas correntes derivadas da École des Annales e nas diversas linhas formadas a partir dos movimentos da Nova História e da História Cultural. Autores como François Dosse, Jacques Le Goff, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, entre outros, trouxeram novas abordagens metodológicas e novos usos de fontes de pesquisa. Produziram biografias que se tornaram referências em seus campos de estudo e que passaram a ser consideradas para além de seus objetos específicos, como parte de uma discussão ampla da presença do biografismo nas humanidades.

Ressalta-se, também, o papel dos jornalistas e da imprensa periódica na produção de perfis de compositores e intérpretes. Voltados para a discussão da atualidade e da novidade, os textos jornalísticos, a entrevista e a crítica musical são fontes importantes para algumas temáticas musicais, incluindo a discussão (auto)biográfica, sobretudo para os compositores e intérpretes eruditos e populares dos séculos XX e XXI.

Considerando-se que a abordagem biográfica há muito vem sendo praticada na pesquisa em música e que há um componente biográfico em grande parte dos projetos apresentados à pós-graduação,  entendemos que a disciplina tem uma contribuição a oferecer, na medida em que se propõe a discutir um conjunto abrangente de fontes de pesquisa e de práticas textuais. No caso mais particular da música brasileira, há uma grande quantidade de fontes a serem  analisadas, bem como objetos de estudo significativos ainda inexplorados.

A proposta desta disciplina vem ancorada em nossas pesquisas anteriores. Em nosso Doutorado em Educação, trabalhamos exclusivamente com impressos sobre música publicados como livros e consultamos grande quantidade de fontes biográficas e autobiográficas, utilizando a fundamentação teórica da História da Educação,  História Cultural e História do Livro e da Leitura, em diálogo com a Musicologia. Em nosso Mestrado em Musicologia, trabalhamos no formato autor-obra com concentração monográfica, apresentando revisão crítica da recepção do autor, análise musical e edição musicológica de um conjunto delimitado de obras (produção sacra coral de Henrique Oswald). Além desses dois trabalhos de pesquisa, a concentração nos estudos de repertório e uma constante leitura e análise de textos voltados à problemática “autor-obra” ou “intérprete-repertório” formam o quadro a partir do qual é proposta a disciplina.

CONTEÚDO (EMENTA):

A - Discussão teórico-conceitual como suporte aos projetos de pesquisa:  A biografia vista como gênero literário e como fonte de estudo em música, considerando-se a centralidade do binômio autor-obra nos estudos musicais (Samson). As críticas à (auto)biografia: o que é um autor (Foucault), a morte do autor (Barthes)  e a ilusão biográfica (Bourdieu). Tipologias das produções biográficas e história da biografia (Levi, Dosse).

B Memória e história: biografia e autobiografia como fontes de pesquisa.
 A Memória e a história (Le Goff, Ricoeur, Nora). Fontes biográficas e seu uso (Levi, Viñao Frago): biografias de compositores, intérpretes e professores; dicionários biográficos; polianteias; entrevistas e documentários; currículos artísticos; perfis e escorços biográficos. A autobiografia e outros gêneros autorreferenciados: diários, cartas, memórias e memoriais institucionais. Discussão sobre a produção dessas fontes (Certeau) e as alterações de sentido ao se passar de um suporte a outro (Chartier).

C - Escrever uma vida: a produção de textos biográficos e autobiográficos.
A cronologia, os perfis biográficos, a biografia e a história como formas de ler e escrever a “vida-e-obra”. Pacto autobiográfico (Lejeune) e autoficção (Colonna). O novo biografismo e o ressurgimento da biografia nos estudos acadêmicos (Dosse).

BIBLIOGRAFIA:
A bibliografia específica musical será fornecida em classe, a partir das temáticas dos projetos dos alunos matriculados.

ALBERTI, Verena. Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa. Rio de Janeiro. Estudos Históricos, v. 4, n. 7, 1991, p. 66-81. Link
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998. Link
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, J; FEEREIRA, M;M; Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas editora, 1996. Link
______. Esboço de auto-análise. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
CERTEAU, Michel de.  A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p.272-273. Link
CHARTIER, Roger. História cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. Link
______. O mundo como representação. São Paulo. Estudos avançados, 5, 11, abril de 1991, p. 173-191. Link
______. Cultura escrita, literatura e história. Porto Alegre: Artmed, 2001.
COLONNA, Vincent.  L’Autofiction. Essai sur la fictionnalisation de soi en littérature. Thèse (Doctorat ) dirigée par Gérard Genette, EHESS, 1989. Link
DOSSE, François. O Desafio Biográfico: escrever uma vida. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: EDUSP, 2009.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor?. Lisboa: Vega, 2002.Link
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. Tradução de Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
______ O fio e os rastros:  Verdadeiro, falso, fictício. Tradução de Rosa Freire d Aguiar e Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GOEHR, Lydia. The imaginary museum of musical works: an essay in the Philosophy of Music. Oxford: Oxford University Press, 1992.
IGAYARA-SOUZA, Susana. Entre palcos e páginas: a produção escrita por mulheres sobre música na história da educação musical no Brasil ( 1907-1958) Tese (Doutorado em Educação) São Paulo. Faculdade de Educação da USP 2011. Link
IGAYARA-SOUZA, Susana. Henrique Oswald (1852-1931): A Missa de Réquiem no conjunto de sua música sacra coral. Dissertação (Mestrado em Artes). São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP. 2001. 
LE GOFF. Memória e história. São Paulo: Editora da Unicamp, 1990.
LEJEUNE,Philippe. Le pacte autobiographique, Paris, Seuil, 1975. Link para o website autopacte
______Je est un autreL'autobiographie, de la littérature aux médias. Paris, Seuil, 1980. 
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: AMADO, J; FEEREIRA, M;M; Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas editora, 1996.
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SHMIDT, Benito Bisso. Construindo biografias... Historiadores e Jornalistas: aproximações e afastamentos. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, n. 19, 1997. p. 1-17.  
VIÑAO FRAGO, Antonio. Las autobiografias, memorias  diarios como fuente histórico-educativa: tipologia y usos. Rio de Janeiro. Teias. Faculdade de Educação. UERJ, ano 1, n. 1, 82-97, jan-jun 2000. Link
______. Relatos e relações autobiográficas de professores e mestres. In: MENEZES, Maria Cristina (org). Educação, Memória, História:  possibilidades, leituras. Campinas: Mercado das Letras, 2004.

CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO:
Participação em aula (seminários, discussão e produção de textos) e monografia final.